quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Cheiro a Terra

Da Memória

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A memória é assim: quando recordamos um momento ou algo sobre o qual já tenha decorrido muito tempo, na verdade, estamos a recordar algo que é mediado, editado - determinado pelo desgaste do tempo, os relatos que fizemos e ouvimos, a nossa volição, as fotografias que fomos revendo, os nossos valores em constante mudança... - ao ponto de, por vezes, já não ser verídico.
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O meu pai faleceu há mais de 25 anos, tinha eu 11. Do seu rosto, com muita amargura, creio já não ter nenhuma imagem pura. O que me resta é uma espécie de composição, resultante dos poucos momentos vivos que recordo e das fotografias que ficaram - não muitas. Na realidade, talvez a imagem mais fidedigna que dele tenha seja aquela com que me deparo todos os dias ao espelho. Assim o diz a minha mãe, com alguma verdade: sou a sua cara chapada - talvez também seja o coração dela a querer recordá-lo no meu rosto. Talvez. A passagem do tempo é assim.
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Regressámos de Moçambique em 1974, tinha eu 4 anos. Desses anos pouco resta: alguns objectos em pau-preto, dois baús em madeira trabalhada, um bote em borracha, algumas fotografias... pouco mais. Não posso dizer que tenha alguma memória desses 4 anos; tudo o que poderei contar será o que ouvi da minha mãe: a travessia do "rio Licungo, cheio de crocodilos", "o lacrau que te ia mordendo (ou mordeu?)" e que "o teu pai queimou em álcool", as "cobras que comiam as galinhas", "o Datsun que lá deixámos", o "maior palmar do mundo", "o carrinho em madeira que o teu pai te fez"... Na verdade, nenhuma imagem para além daquelas que ficaram registadas em fotografia.
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Mas a natureza humana é extraordinária: se há alguma coisa que eu consiga recordar, embora de forma inefável, intangível, é o cheiro de África, da sua terra. Não sei como é; não posso descrevê-lo... sei apenas que, do mesmo modo que sinto o bater do coração no peito, sinto, de vez em quando e cada vez menos, uma palpitação da memória olfativa (não sei como a descrever de outra forma) quando vejo imagens de África na televisão ou no cinema. Aconteceu-me de forma intensa ao ver Out of Africa, por exemplo. É uma memória maravilhosa - e esta, tenho a certeza, não está longe de ser pura.
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O bote de borracha que veio de Moçambique e usei até aos 18 anos.
Na praia de Macuze, Quelimane, e no rio Balsemão, em Penude, Lamego

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