sábado, 28 de junho de 2008

Arroz de feijão, mas com menos sal

Viandantes por Cá
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- “Olá, Rui! Chegaste uns minutos atrasado. Estiveram aí uns russos e uns israelitas… O Nuno tentou explicar-lhes como se faziam as pataniscas e o arroz de feijão, mas não sei se perceberam.”
- “Devem ter percebido. Falaram em Inglês?”
- “Sim,” confirmou a Catarina, formadora de TIC.
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No domingo passado, os nossos alunos quarentões de um curso de formação de adultos (daqueles que têm mesmo 900 horas de formação, não dos outros, de que todos já ouviram falar…) realizaram uma actividade integradora no âmbito das tradições gastronómicas do concelho de Ponte da Barca. Aproveitando os festejos do S. João no parque de merendas sobranceiro ao rio Lima, montaram uma barraquinha de comes e bebes e presentearam os barquenses e visitantes de passagem com um fabuloso arroz de feijão com pataniscas e iscas de bacalhau, caldo de farinha e vinho verde carrascão. O facto de duas das formandas serem cozinheiras de profissão era garantia de bons apetites. A testemunhá-lo, o já referido grupo de russos e os meus amigos israelitas, Tehila e Baruch Levi.

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As pataniscas estavam tão boas que vieram repetir o repasto. “Ó Rui, Rui, aquele é o casal israelita!,” acenava o meu colega Nuno, formador de Matemática para a Vida. Não foi preciso dizer mais nada: em dois minutos, a minha curiosidade pelas coisas do mundo fez-me saber que a Tehila – vejam a coincidência – também era professora de Inglês e o Baruch militar no ramo das comunicações, ambos reformados. E por quê Ponte da Barca? Pois vieram ver o rancho folclórico da vila, que actuava ali naquela noite. Uma razão tão boa como qualquer outra, diga-se, mas que à maioria dos portugueses não faria mover uma palha, quanto mais tantos quilómetros. Mais extraordinário ainda é o facto de o casal Levi nunca ter ouvido falar nem visto este rancho antes de rumar à Península Ibérica para um período de férias ansiado. Estavam em Lisboa, vindos de Madrid, onde alugaram carro, e aí assistiram a um festival folclórico com vários grupos do país. Gostaram tanto deste que, sabendo que tornaria a actuar aqui neste domingo, fizeram-se à estrada. Não imaginavam a sorte que teriam – a de conhecer uma das regiões mais bonitas deste nosso Portugal. E claro, de provar pataniscas tão sublimes!

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Na verdade, a Tehila e o Baruch já planeavam dirigir-se para norte – mas não tanto. Há 25 anos já haviam estado em Portugal e desejavam voltar a alguns dos locais que então visitaram. Coimbra era um deles. Pernoitaram no mesmo hotel de há 25 anos, junto ao Mondego. E segundo eles, foi como se visitassem outro país: “Nessa altura, as pessoas vinham para a cidade de bicicleta ou de burro e traziam cinco, seis filhos à sua volta. A maior parte descalços ou de sandálias, e todos vestidos de escuro. Muito pobres.” Referiram a margem do Mondego, completamente recuperada, as estradas boas, os prédios novos… “Mas as pessoas são as mesmas, muito simpáticas; só que muito mais conversadoras.” Ficaram espantados quando lhes disse, a propósito do curso de formação de adultos e da actividade que estavam a levar a cabo, que quase 40% da população portuguesa apenas tinha 4 anos de escolaridade. “Em Israel quase todos têm o ensino secundário!” (confirmei há pouco estes dados; e se não correspondem literalmente à verdade, não estão longe disso: a escolaridade média dos israelitas é de 11,8 anos!).
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- “Vocês têm uma vida muito relaxada”, dizia-me o Baruch, olhando em volta para os comensais satisfeitos; a música popular a marcar o ritmo das suas conversas triviais.
- “Sim, é verdade. Faz parte do espírito português.”
- “Em Israel, vivemos pelo dinheiro. Todos têm dois empregos. Levanto-me todos os dias às 7 da manhã e leio o jornal todo. E durante o dia ouço as notícias hora a hora.”
- “O Baruch agora é agente de seguros”, acrescentou a Tehila.
- “Os árabes obrigam-nos a viver o dia-a-dia como se fosse o último das nossas vidas,” continuou o Baruch, como que sentindo o dever de afirmar ao mundo o porquê de ser israelita – sentimento patriótico genuíno, do fundo da sua alma; talvez um nada amplificado pela sua formação militar.
- “Demos territórios aos palestinianos, mas não lhes chegam. Querem tudo. Não querem que existamos. Não compreendo.”
Independentemente das razões históricas de cada um dos povos, consigo compreender a tensão e paixão que Baruch deixa transparecer nas suas palavras. Tehila mostra-se mais reservada, mais curiosa com as coisas do mundo: “É encantador! Ver pessoas de idades diferentes a actuar em palco. Não é normal. Nunca tínhamos visto algo semelhante nas nossas viagens, a não ser na Roménia e Bulgária.” Levanta-se da nossa mesa para se aproximar do palco e repetir as fotografias que já tinha tirado em Lisboa, com os olhos humedecidos de alegria. Eu e o Baruch continuamos a conversa com o nosso segundo fino.
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Despedimo-nos com a promessa de trocar correspondência, que se cumprirá. A Tehila fará certamente o arroz de feijão (com menos sal, sublinham), a partir da receita traduzida pelos meus formandos. Todos ficámos mais ricos com o conhecimento mútuo. A Tehila e o Baruch com a esperança de dias de menor tensão; nós com a certeza de vivermos num cantinho privilegiado do mundo, não obstante a pobreza de muitos, escondida por estradas modernas, prédios bonitos, carros topo de gama… Valham-nos as pataniscas, tão bem acompanhadas!