terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Alentejanices no D. José Pinhão, em Constância

Aqui Bem Se Come
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Vindos de uns dias prazenteiros no Alto Alentejo e sendo horas de aconchegar o estômago, acostámos à belíssima vila de Constância, debruçada em escada sobre um Tejo diminuído pela seca. Em frente, a relembrar-nos que no mundo moderno a beleza bucólica tem sempre um contraponto, uma celulose horrenda expelia o seu fel gasoso. Desviámos o olhar, não fosse estragar-nos o repasto reconfortante que antecipávamos.
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Indagado um transeunte nativo sobre onde degustar as melhores viandas, recebemos a indicação do D. José Pinhão, a escassos metros da Praça do Pelourinho (Praça Alexandre Herculano), como sendo um restaurante de "média-alta". Esperançados de que a adjectivação não tivesse conotações de classe mas apenas de substância, aligeirámo-nos ao destino.
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O D. José Pinhão - nome de um antigo proprietário do imóvel - ocupa o piso térreo e o primeiro andar de um edifício do século dezoito. À entrada, do lado direito, em bom prenúncio, recebe-nos uma enorme pia de casa de banho em granito "escavado", datada de 1854. Nesse piso térreo deparamos com uma zona de "petiscos", balcão e mesa única em madeira robusta; e um vislumbre de cozinha asseada. A sala de refeições fica no primeiro andar e acolhe-nos com uma decoração rústica irrepreensível: uma sala alta a lembrar um celeiro, em que predomina a madeira cuidada de móveis antigos; atoalhados que prometem deleite.
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Queijinho de ovelha seco e azeitonas com ervas abriram as hostilidades, irmanados de pão regional alentejano excepcional. Não provámos a cenoura de coentrada que nos colocaram sobre a mesa, o que lamentámos a posteriori. Para arbitrar a contenda, convocou-se um Casal da Coelheira tinto (meia garrafinha, pois ainda nos restava um compromisso de 3 centenas de quilómetros com a estrada). O "quer que aqueça um pouco o vinho?" do empregado de mesa fez jus à sua apresentação impecável.
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Seguiram-se sopa de cação e carne de porco à alentejana, cada uma das doses a partilhar entre os comensais. A sopa de cação vinha um pouco espessa, mas deliciosa. Ao contrário do que costumo fazer, o pão já havia sido regado pelo caldo quando chegou à mesa em terrina de barro (mas mantinha-se íntegro, a provar a sua qualidade). A carne de porco estava apuradíssima, cortejada de batatinhas fritas em pedaços, como manda a lei.
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Para sobremesa, escolhemos uma bavarois de frutos silvestres: extraordinária. Para quem não é um indefectível amante de doces, esta palavra não será suspeita.
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O café com que se rematou o repasto era tão originalmente bom que sentimo-nos obrigados a perguntar de que marca era, pois foi servido numa chávena em desuso, rasa, e livre de tiques publicitários. Delta, afinal. Pois bem, ficaram bem justificados os vinte e oito euros e vinte cinco cêntimos. Acaso venhamos a passar por esta bela terra em horas de viandar, saberemos que aqui não vimos ao engano.
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À mesa: Liliana e Rui
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Serviço: muito bom
Ambiente e Decoração: excelente
Higiene: muito bom
Preço: muito bom
Avaliação geral: 9/10

domingo, 23 de dezembro de 2007

Um ano de coisas boas...

O Viandante comemora hoje um aninho. Por isso está feliz e agradece a todos os seus visitantes o tempo que lhe dedicaram. Apropriadamente nesta época festiva, renova o propósito de partilhar convosco muitas aventuras de estrada, os encantos da boa mesa e os afectos da convivialidade. Boas festas.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Ameijoa Chorada

Vianda
De minha lavra
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Acabei de ler uma receita de "Ameijoas à Bolhão Pato" no blogue do meu amigo Victor Reis e não resisti a fazer-lhe concorrência com uma receita caseira. Imperdíveis, modestiazinha à parte!
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Refogue-se em azeite durante três ou quatro minutos uma cebola grande picada, acompanhada de duas dúzias de pedacinhos de toucinho de corte fino e quatro dentes de alho generosos laminados. Entretanto, cortou-se em pedaços um tomate maduro, sem pele, que se junta ao refogado durante alguns minutos (também serve tomate em pedaços enlatado).
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Os dois quilos de ameijoas estagiaram previamente em água salgada durante duas horas, durante as quais se viraram e reviraram algumas vezes para perderem a areia. Escorreram-se e reservaram-se para o golpe de misericórdia final - tacho com elas!
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Regam-se com meio decilitro de vinho branco maduro, polvilham-se com pimenta preta moída no momento e ruborizam-se com uma malagueta; o sal, cabe-lhes a elas, no seu choro final (que maus somos!). Tape-se o tacho, que nos custará menos.
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Durante os cinco minutos de cozedura viraram-se as ameijoas várias vezes, preferencialmente com o tacho (alto) tapado, em movimentos volteados, bruscos. Um minuto antes de se desligar o fogo, junta-se ao pitéu um punhado de coentros picados. Mexe-se tudo uma última vez.
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Comem-se imediatamente, para que ainda lhes possamos sugar o espírito! Um vinho branco da Vidigueira fresquinho ou uma cerveja gelada servirão para a nossa absolvição.
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Tchim, tchim!
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Nota: à falta de ameijoa fresca (que tão cara está!), podemos encontrar nas grandes superfícies ameijoa de origem tailandesa, de tamanho grande, muito satisfatória. Neste caso, será necessária uma pitada de sal.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Serenidade em Hallstatt

Andarilho
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Apetece estar na Áustria, percorrer as suas paisagens belíssimas; sentimo-nos preenchidos com a percepção de que em cada montanha, em cada vale, em cada gota de água que por eles escorre está a assinatura de um qualquer ente superior - só assim se explica a serenidade que sentimos na sua contemplação. Mas não só: a intervenção do homem soube respeitar essa dádiva, enriquecendo-a até, de tal modo que a paisagem construída parece fazer parte da obra original.
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Entre muitas outras vilas e cidades, Hallstatt corporiza esta visão da Áustria, acrescentando-lhe um toque de romantismo que a torna inesquecível. A sua localização privilegiada junto ao Hallstätter See, no sopé do monte Dachstein, tornam-na um local de visita indispensável.
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Em 1998 esta região da Salzkammergut foi declarada pela Unesco Paisagem Cultural património da humanidade. Como o nome indica, o sal está ligado à origem e história desta região. Os vestígios da sua exploração remontam há mais de 4 mil anos. As minas de Salzbergwerk, nas imediações (podem ser visitadas), são as mais antigas do mundo, tendo sido inicialmente exploradas pelos Celtas; por volta do primeiro milénio antes de Cristo a exploração comercial das minas já fazia chegar o sal da região ao mar Báltico e ao Mediterrâneo.
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Mais do que o interesse histórico da região, o que fez sentirmo-nos bem em Hallstatt foi percorrer as suas ruas íngremes de casas em pedra e madeira, observar o cuidado extremo dedicado às varandas floridas, admirar a imagem da cidade reflectida nas águas calmas do lago, almoçar umas sandes e uma cerveja austríaca junto à água... Enfim, persentir a paz de que os seus habitantes devem desfrutar nos meses de inverno, ao calor de uma lareira... É bom sonhar!
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terça-feira, 25 de setembro de 2007

Afsluitdijk, Holanda

Andarilho
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"Um povo que vive constrói o seu futuro"
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Inscrição no monumento que comemora o feito histórico da conclusão do Afsluitdijk (dique de fechamento), na Holanda.
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São 30 quilómetros de barro, areia, pedra e betão - alguns dos materiais usados para erguer esta obra de engenharia extraordinária. Percorrem-se com espanto: o Mar de Frísia de um lado e o IJsselmeer do outro. Concluído em 1932, com um custo final de 55 milhões de euros (montante colossal para a época), o Afsluitdijk permitiu a criação (progressiva) de um imenso lago de água doce interior - o IJsselmeer -, importantíssimo para a economia das regiões circundantes e como reserva de água potável; o controle das marés e a ausência de água salgada facilitou a conquista de mais de 150.000 hectares de terra nova - os pólteres de IJsselmeer (zonas baixas pantanosas); permitiu também elevar o nível de segurança destes e dos seus diques secundários. Para além de tudo isto, é uma construção de inegável interesse turístico.
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Percorre-se com espanto porque no deslizar seguro do automóvel intuimos um plano grandioso, bem definido, uma ambição simultaneamente desmedida e sustentada. Enfim, um projecto de nação.
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sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Le Pays de l'Ardèche Meridionale

Andarilho
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A movimentadíssima A7, que liga Marselha a Lyon, pode ser um pesadelo para quem, durante o verão, de férias ou em trabalho, se desloca para o sul ou norte da Europa. Em duas ocasiões fomos obrigados a abandoná-la por não permitir aquilo para que foi construída: o movimento célere de automóveis. Em ambas as ocasiões, a poucos quilómetros de Valence; e em ambas com um golpe de felicidade. Desta vez, saímos para leste, embrenhando-nos nas estradas tortuosas do Departamento de Ardèche. E que descoberta! Tal, que é difícil perceber o movimento louco de automóveis em direcção à Provença, quando ali, tão perto, repousa um paraíso para os sentidos - certamente desconhecido de muitos franceses.
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Da paisagem semi-Alpina, de bosques de cedros, carvalhos e castanheiros, a noroeste de Aubenas, às Gorges de L'Ardèche, a sudeste, claramente mediterrânica, o Departamento de Ardèche, na sua parte meridional, revela-se um destino de férias de eleição para quem goste do contacto com a natureza, de desportos radicais, da simplicidade nos contactos pessoais e, necessariamente, tenha uma boca exigente...
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Para tal, aconselha-se a estada num dos inúmeros parques de campismo da região, a maior parte situados à beira-rio e bem equipados. Poderia deixar outras sugestões, mas limito-me a duas, para que a descoberta seja pessoal: que se percorram as estradas menos óbvias, sem deixar de fazer a D294 (com passagem por Balazuc, uma Village de Caractère) e a extraordinária D290, entre Pont D'Arc e St Martin D'Ardèche, pelas gargantas do rio Ardèche; e que, se por mero acaso passarem por Jaujac, a leste de Aubenas, presenteiem o estômago com uma refeição no despretencioso e algo kitsch (parece um contra-senso, mas não é) Restaurant-Bar Les Loisirs (menu completo a 23 euros em Agosto de 2007).
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sexta-feira, 10 de agosto de 2007

Propósito de Viandante

Coleccionar menos paisagens, menos monumentos visitados, menos fotografias tiradas; ou acrescentar-lhes mais conversas anónimas, escutadas em mercados e esplanadas, mais diálogos audazes com nativos, o cheiro de uma flor, os aromas de um prato estranho, o nome de uma árvore desconhecida...
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domingo, 15 de julho de 2007

Tremoço na Praia

Viandantes Por Cá
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Praia de Esposende, ontem, pelo fim da tarde. Depois de meia hora estendido na areia para não dizerem que não lhes fazia companhia, deixei mãe e esposa no torrador para abancar no meu local preferido à beira-mar: uma esplanada. Por companhia, um pires de tremoços e o fino da praxe. Como me tinha esquecido do jornal, ocupei o tempo valioso a afinar o olhar, que o verão passa rápido.
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À minha frente senta-se um casal belga ou holandês, de quarenta e muitos, com o seu casal de filhos belíssimos, ambos a devorar um gelado de leite. Pedem beer, servida célere na forma de dois finos que bradavam frescura. Instantes depois, à passagem do empregado de mesa, o marido, com um gesto decidido, pede that, apontando para o meu pires de tremoços. Chega ainda mais rápido que a cerveja, qual moçoilo ávido na alçada de loiras em biquini. O marido aborda o pires hesitante (afinal, o gesto decidido visava disfarçar a sua ignorância). Pega num tremoço e analisa-o com curiosidade, sob o olhar expectante da família; trinca-lhe o bico, rói timidamente a casca em redor da semente amarela... Finalmente, mete o tremoço todo à boca e mastiga-o; mas sem deixar transparecer qualquer juízo sobre o mesmo, pelo que o filho se atira ao dito, imitando a abordagem do pai; a seguir a mãe e a filha. Das suas caras não era possível discernir qualquer significado. Entretanto, o meu pires já se esvaziara: estavam frescos, mas algo amargos. Alguns minutos depois, quando estava distraído com os bronzeados ambulantes, o filho do casal vira-se para trás e estende-me o pires de tremoços, ao mesmo tempo que o pai diz:
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- We don' like it.
- It takes some time to get used to the taste, respondo-lhe.
- Yeah, just like olives. I like olives. Diz.
- Yes, that's true: olives are great!
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Recuso os tremoços simpaticamente, com um gesto de quem está cheio. O empregado torna a passar e o senhor pede um café. Servem-lhe um café curto, Buondi. Despeja um pouco de açúcar com um cuidado extremo, talvez habituado aos cubinhos. Mexe o café desajeitadamente, com a cara por cima da chávena, observando o girar do líquido com toda a atenção. Prova o café... Após um instante longo (é verdade: para quem observa, os instantes podem ser muito, muito demorados), consigo distinguir um ligeiríssimo franzir do sobrolho, inquestionavelmente aprovador. Pousa a chávena e com a colherinha dá a provar o líquido saboroso ao filho; e outra à filha. Que bom, parecem dizer.
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Uma bela tarde de praia.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

De Tyndrum a Oban, Escócia

Andarilho
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Olhar para um mapa da Escócia é um exercício ilusório. Noventa e cinco por cento das localidades assinaladas em qualquer mapa de dimensão razoável não são mais do que pequenas aldeias, muitas vezes de uma só rua. Para quem viaja de forma independente e conta com os ovos no dito da galinha, arrisca-se a ter que lidar com o imprevisto.
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Viajo com quatro amigas, de mochila às costas; sem nada marcado, com excepção das duas primeiras noites num Bed & Breakfast de Edimburgo. Daqui para a frente contamos connosco e a ajuda incansável dos funcionários dos postos de turismo. Partiramos com um esboço de trajecto e um orçamento suficiente para uma dezena de dias frugais.
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Ao terceiro dia, partimos de Edimburgo em direcção a Dalmally, uma localidade discreta entre Glasgow e Oban (uma das cidades de acesso às Highlands): alojamento marcado no dia anterior, prevendo o tempo necessário para visitar Glasgow e de acordo com os horários dos autocarros e comboios. Visitada Glasgow, partimos em direcção a Dalmally: de autocarro até Tyndrum e de comboio daqui ao local de repouso. O trajecto até Tyndrum percorre uma paisagem lindíssima, dominada pelo Loch Lomond (primeira foto), o maior lago escocês. A aldeia de Tyndrum (segunda foto) surpreende-nos. Quatro da tarde. É aqui que devemos apanhar o comboio? Onde está a estação? Ao fundo do vale? Mas hoje já não passa mais nenhum comboio? Como não passa? Mas temos alojamento marcado em Dalmally - e temos que chegar até às cinco, caso contrário a reserva fica anulada! Também não há autocarros?!
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A simpática senhora que recebe esta catadupa de perguntas esboça um sorriso compreensivo. Sugere-nos que telefonemos para o host da Craig Villa, a Guest House onde estava previsto pernoitarmos - e que o podíamos fazer do pequeno posto de informações de Tyndrum, ao fundo da rua. Não temos escolha. Aqui, informam-nos que a única alternativa é procurar o Mr Cunningham, um senhor que presta serviços de transporte escolar. A sua casa fica na outra ponta da rua, de onde tínhamos acabado de vir. As mochilas já pesam, depois de um dia de andanças. Batemos à porta; atende-nos a esposa. O Sr. Cunningham não está; e não costuma fazer transporte de pessoas nesta altura do ano... Insisti, explicando detalhadamente a nossa desventura, ao que a senhora prestou-se a telefonar ao marido. Enquanto esperamos, rimo-nos da situação e antecipamos a noite dormida num qualquer coberto de Tyndrum. Boas notícias: o senhor Cunningham estará ali em meia hora. Regresso ao posto de informações para telefonar finalmente para a Guest House, avisando do nosso atraso.
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O senhor Adam Cunningham tem uma pronúncia incompreensível, rasgada, carcomida: "itch tun y fro?", foi uma das questões que teve de repetir uma mão cheia de vezes, antes que compreendêssemos que nos perguntava de que cidade éramos!!! Sento-me ao lado dele e tenho as despesas da conversa: obrigações de cavalheiro e curiosidade de viandante. O senhor Cunningham é de uma simpatia rude, de homem das montanhas. Tivemos muita sorte, pois calhou estar por perto. Só costuma transportar as crianças de Tyndrum e arredores para a escola, especialmente nos meses de inverno, em que as estradas são muito difíceis e não há serviços de autocarro nos percursos secundários. Mas também tivemos azar, pois visitávamos a Escócia "no verão mais molhado dos últimos cem anos", disse-nos, supostamente veiculando uma qualquer notícia ouvida num noticiário local. Não se calou um minuto durante os cerca de 15 quilómetros do trajecto, falando-nos da história local e aconselhando-nos a visitar alguns monumentos nas cercanias (entre outros que já se esconderam nos meandros da memória, o Kilchurn Castle, perto de Dalmally).
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A despesa deste serviço de transporte personalizado ultrapassou em muito pouco o que pagaríamos pelos cinco bilhetes de comboio, pelo que convenci as minhas amigas a "contratá-lo" para a viagem do dia seguinte até Oban, ao que o senhor Cunninham acedeu amigavelmente. E assim, após uma noite bem dormida na enormíssima Dalmally (terceira foto), prestámo-nos a mais uma lição de história e simpatia até Oban (quarta e última fotos; nesta, a carrinha do Mr Adam Cunningham sob a persistente chuva escocesa).
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sábado, 9 de junho de 2007

Santuário de Delfos, Grécia

Andarilho
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Segundo os gregos antigos, Zeus, deus supremo do Olimpo, desejando encontrar o centro da terra, largou duas águias das extremidades do mundo; as duas aves sagradas encontraram-se em Delfos, determinando assim o "umbigo" da terra. O mito também nos conta que o deus Apolo (tal como narrado por Homero) terá fundado o seu primeiro templo em Delfos, após aniquilar o famoso dragão (serpente feminina, segundo alguns) Python, guardião do oráculo de Gaia, a mãe dos deuses e primeira adivinhadora do oráculo de Delfos. Assim, o mito, pela mão do homem crédulo, fez-se realidade neste santuário.
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Não obstante a envolvência turística e comercial a que o sítio arqueológico está sujeito, será improvável que qualquer viandante que aqui chegue não consiga apreender uma dimensão do sublime: seja no âmbito do sagrado, da imponência da natureza, da beleza da criação humana... Situado na encosta do Monte Parnasso (2457 m) e debruçado sobre o majestoso vale do rio Pleistos, a poucos quilómetros do Golfo de Corinto, o santuário de Delfos encerra o que muitos designarão como um "espírito de lugar". Foi isso que senti quando aqui estive em 2002: realizado, parte integrante da paisagem e da história que me rodeava.
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A paisagem que nos circunda é tipicamente mediterrânica: árida, pontilhada por oliveiras, azinheiras e ciprestes, sob um calor sufocante. A altitude e a brisa (amiúde transformada em sopros de vento fortes, talvez a recordar-nos que estamos em território alheio) atenuam um pouco os efeitos do sol abrasador. Por isso, no verão, a visita ao santuário deve ser feita de manhã cedo e, eventualmente, terminar no museu, quando o calor começar a apertar. O museu de Delfos acolhe um espólio de frisos, estátuas e objectos decorativos fantástico, muitos deles oferendas de reis e do povo comum ao oráculo de Apolo (nas fotografias, em cima: a Esfinge dos Naxians, de 550 a.C.; e dois kouroi, Kleobis e Biton, do escultor argivo Polymedes, de 590 a.C.)
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A visita ao santuário faz-se por um trilho íngreme, denominado Caminho Sagrado, que nos conduz ao Templo de Apolo, o deus solar. Ao longo deste caminho, em ambos os lados, erguiam-se dezenas de estátuas e vários edifícos em estilo iónico e dórico, dos quais podemos ainda observar vários vestígios. A subida árdua é compensada com a chegada ao que resta do Templo de Apolo (em baixo), elemento central de todo o santuário e onde se encerrava o oráculo.
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A figura central do oráculo era a pitonisa, uma mulher de mais de 50 anos que, virgem ou não, deveria ser casta e abandonar a família após a assunção deste papel supremo. A leitura do voo das aves, das entranhas de animais, dos sonhos e das chamas nas piras sacrificiais eram alguns dos métodos divinatórios dos gregos antigos, mas a pitonisa, segundo os estudiosos, sentada no trono de Apolo Phoibos, enunciava os seus oráculos atingindo uma espécie de transe e articulando uma série de gritos aparentemente sem sentido, que eram interpretados pelos Prophetai (sacerdotes dos deuses Apolo e Dioniso) e comunicados ao peregrino (apenas os homens podiam colocar questões à pitonisa).
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É em tudo isto que pensamos perante as ruinas do templo e o enquadramento natural grandioso, talvez algo tontos com a incidência directa e forte do sol, talvez de Apolo - e que nos recorda o ritual de sacrifício que precedia a prática da adivinhação: uma cabra era trazida ao oráculo e borrifada com água fria; se tremesse da cabeça aos pés, o deus Apolo consentia que a pitonisa se sentasse no seu trono e praticasse os rituais divinatórios. E a cabra seria sacrificada...
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Com um arrepio na espinha, prosseguimos em direcção ao teatro do século IV a.C., palco dos concursos literários dos Jogos Píticos, um festival religioso em honra do deus Apolo. Mais acima, já com a roupa colada ao corpo, chegamos ao estádio - o mais bem preservado em toda a Grécia -, onde decorriam as provas atléticas do festival.
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Chegar aqui sob este calor intenso é já uma prova para muitos. Para mim é sobretudo um acto de comunhão: resta-me entrar em transe, libertar a cabra sacrificial e regressar ao passado para ouvir os aplausos aos vencedores.
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sábado, 2 de junho de 2007

Solar do Bacalhau, Valença

Aqui Bem Se Come
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Encontram o restaurante Solar do Bacalhau dentro das monumentais muralhas de Valença, com acesso por duas das ruas que conduzem à Pousada São Teotónio.
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As instalações são modernas e amplas, com bastante luminosidade. O atendimento é muito bem educado e eficiente. Os empregados de mesa trajam as cores predominates no estabelecimento, patentes no cartão de apresentação.
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Cheguei pela uma da tarde. Acedi ao piso superior, apenas com uma das mesas ocupadas. Entretanto, com o aproximar da hora de almoço espanhola, a sala foi-se aconchegando de calor humano. Inevitavelmente, vinham todos pelo bacalao português, que, suspeito, ocupa o primeiro lugar nas prioridades dos nossos vizinhos galegos - e espanhóis em geral - quando se deslocam a Portugal. E fazem muito bem.

Os 19 euros do bacalhau assado na brasa (não serviam meia dose, o que é uma lacuna) afastaram-me para os filetes de bacalhau com arroz de feijão, a uns mais simpáticos doze euros. O que se revelou uma excelente segunda escolha: 4 filetes generosos que satisfariam duas pessoas e um arrozinho de feijão delicioso, soltinho como manda a lei, e que despachei todinho, todinho; os filetes desfaziam-se na boca, como se esperava.

Antes do prato principal, provou-se uma chamuça de carne de aves (assim parecia) e sabores orientais (talvez um pouco de caril e açafrão), que abriu bem o vinho branco da casa: O Regedor, engarrafado por Manuel de Oliveira, V. N. Famalicão. Uma pinga levezinha e de sabor frutado q.b., como pede o excelentíssimo fiel amigo. A broa de excelente qualidade também não ficou abandonada, como se calcula.

Rematou-se tudo com um Bicafé razoável e dezoito euros e sessenta cêntimos, que se justificaram.

À mesa: O Viandante

Serviço: bom
Ambiente e decoração: muito bom
Higiene: muito bom
Preço: razoável
Avaliação geral:
8/10
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quinta-feira, 31 de maio de 2007

Percurso Pedestre do Salto do Cabrito, S. Miguel, Açores

Andarilho
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Em Junho de 2001 a minha amiga Nanda acolheu-me durante uma semana na sua casa em Ponta Delgada, S. Miguel. Cheguei para conhecer duas ilhas dos Açores, sem grandes planos. Uma semana em casa da Nanda e três dias em casa de outra amiga, a Esperança, na Praia da Vitória, Ilha Terceira. Para viver ao ritmo das suas rotinas.
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No dia seguinte à minha chegada, creio que um sábado, a Nanda já tinha planos para mim (e para ela). Uma caminhada até ao Salto do Cabrito, com partida e chegada na Ribeira Grande, com passagem por Caldeiras. As mulheres mandam! Arrancámos de manhã cedo. À chegada à Riberia Grande juntámo-nos a uma dezena de pedestrianistas que também participariam na caminhada, orientada pelos Amigos dos Açores, uma associação ecológica.
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Não vos maço com muitas mais palavras: estas três horas de caminhada foram de certeza um dos momentos altos da minha vida de viandante. Para quem viaja, a possibilidade de conhecer os locais que visita na companhia de quem os conhece é uma mais-valia. Fiquem com algumas das fotos (do que vos garanto ser uma das paisagens naturais mais belas do mundo):




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Próximas duas fotos: Central Hidroelétrica do Salto do Cabrito
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Salto do Cabrito:
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Bosque de criptomérias:
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Central Geotérmica Piloto:
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Próximas duas fotos: Caldeiras
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segunda-feira, 21 de maio de 2007

Greenwich, Londres

Andarilho
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Hoje, que se soube do incêndio que devastou o famoso Cutty Sark, recupero algumas fotografias da zona de Greenwich (pronuncia-se gren-ich), em Londres, de um passeio realizado com um magnífico grupo de amigos em Junho de 2001.
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A zona histórica de Greenwich faz parte da lista Património Mundial da Unesco desde 1997. Situada fora das zonas mais turísticas da cidade de Londres, a leste, na margem sul do Tamisa, é ignorada por uma grande parte dos turistas e viajantes que se deslocam à capital inglesa. Injustamente, diga-se, pois é um espaço de horizontes abertos, em que é possível passear a um ritmo pausado por ruas pitorescas, zonas verdes amplas e por entre construções monumentais, clássicas, longe do frenesim do centro da cidade. A não perder, destaca-se (com o incêndio de hoje, desconhece-se o seu futuro) o Cutty Sark, o veleiro mais veloz do mundo, construído em 1869 e retirado para uma doca seca de Greenwich em 1954; o National Maritime Museum; o Old Royal Naval College; o Greenwich Park e o Royal Observatory, onde poderão colocar cada um dos pés em ambos os lados do meridiano homónimo. Um pouco afastado do conjunto monumental, mas também de interesse, a Millenium Dome.
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Para chegar a Greenwich a partir do centro de Londres, aconselho duas alternativas: apanhando o DLR (metro de superfície) até à estação de Cutty Sark, com passagem por bairros degradados dos subúrbios da metrópole, o que nos permite vislumbrar uma outra faceta de Londres; ou, se o tempo estiver de feição, de barco, para o que terão de procurar informação específica. De regresso ao centro de Londres, e se estiverem em grupo, aconselho vivamente atravessarem o Tamisa pelo Greenwich Foot Tunnel, que, como depreendem, passa por debaixo das águas castanhas do maior rio inglês. Com 390 metros de comprimento, a travessia do túnel pode tornar-se num momento excitante de fim de visita a esta parte de Londres. Para descerem ao túnel poderão utilizar um elevador (que só funciona a certas horas) ou descer (e subir) cerca de 100 degraus. A saída encontra-se na Isle of Dogs, na margem norte do Tamisa, com uma vista lindíssima sobre Greenwich. A partir daqui poderão visitar o igualmente interessante Canary Wharf complex.
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quarta-feira, 16 de maio de 2007

África Acima

As Viagens dos Outros
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"A península do Cabo da Boa Esperança (...). Aqui teve origem Portugal, penso. Não aquele dos portugueses, mas o país do resto do mundo. Se não fora por este Adamastor por fim domado, o que nos faria aparecer no percurso comum da humanidade? Que espaço nos seria dedicado na enciclopédia? Quantas linhas, que assunto, nos livros de história? Uma nota de pé de página sobre a pesca do bacalhau?"
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Este é um dos parágrafos iniciais de África Acima, o novo livro do viandante Gonçalo Cadilhe, que aconselho vivamente. Confesso que gostava de ter tido a coragem do Gonçalo - a de enveredar por um estilo de vida desprendido de lugares comuns e ao mesmo tempo dedicado a uma causa: a construção de um planisfério pessoal (nome do seu primeiro livro). Sempre quis ser escritor de viagens, mas algures num qualquer cruzamento da minha vida terei confundido o caminho a seguir. Paciência. Resta-me ler sobre as andanças dos outros e escrever estes humildes relatos no Viandante. Nada mau.
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África Acima é uma colecção de crónicas publicadas no semanário Expresso sobre a sua travessia de oito meses do continente africano, num percurso sul-norte. Está redigido numa linguagem simples e directa, a espaços extremamente inteligente; o registo de diálogos e a observação de pormenores é surpreendente. Façam o favor de ler.
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Gonçalo Cadilhe, África Acima, Oficina do Livro, 2007. Citação da página 16. Imagem: marcador de livros da edição.
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domingo, 13 de maio de 2007

Uma Viagem com Gatos

As Viagens dos Outros
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Acabei de ler um texto lindíssimo (o quinto de uma série) sobre uma expedição a Marrocos. Com gatos, burros, dromedários, formigas e sapos. A personagem principal desta narrativa de viagem é o meu animal preferido (e sagrado para os muçulmanos): o gato. Vale a pena lê-la, aqui, no blogue da Fátima Mariano. O gatinho cinzento é meu! Já o adoptámos cá em casa.
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segunda-feira, 7 de maio de 2007

Península de Morrazo, Galiza

Andarilho
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Muito perto do norte de Portugal encontra-se um dos segredos mais bem guardados da Galiza: a Península de Morrazo, a norte de Vigo. A palavra segredo será um exagero, mas a proximidade a esta cidade, Pontevedra e Sanxenxo faz com que seja relegada para segundo plano nos percursos de viagem de muitos viandantes. E ainda bem, cá para nós. Dois locais deverão merecer a vossa atenção: o parque de Campismo Aldán, na vila homónima, e o fantástico Cabo de Home.
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O Camping Aldán é um parque bem equipado, com muitas árvores frondosas e amplas áreas relvadas. O seu maior trunfo é a sua localização, a cerca de 500 metros da Playa de Francón, através de um caminho íngreme e com vistas lindíssimas sobre a baía, e a menos de um quilómetro de Aldán. Duas a três vezes por ano passamos aqui um fim-de-semana, geralmente em Junho, em que a ocupação do parque é pouco intensa e o sossego impera. A pequena Playa de Francón é bastante frequentada, sendo difícil encontrar um lugar para estender a toalha a meio da tarde; tal deve-se ao facto de se situar ao pé de outro parque de campismo (sempre cheio e menos aconselhável) e à sua localização privilegiada, num recanto da Ria de Aldán. Mas o mais agradável para mim é poder saborear uma cerveja fresca no bar tosco em estilo tropical que existe sobre a praia, com vistas magníficas e o ruído de fundo dos banhistas e das ondas a desfazerem-se no areal.
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O Cabo de Home (na foto, em baixo), a poucos quilómetros de Aldán, é uma área protegida, de acesso restrito: os caminhos que o percorrem não são alcatroados e algo difíceis de fazer; parte do percurso é dramático, feito sobre as falésias. A pé, de bicicleta ou de automóvel, é um passeio memorável. A sua maior atracção é a Playa de Melide (visível na foto), em frente à baía de Vigo e às Islas Cíes - um verdadeiro paraíso para quem aprecie a natureza em estado quase puro. Está rodeada de pinhais limpíssimos, que, graças às suas sombras abundantes e brisa constante, convidam a uma boa soneca a meio da tarde. O seu maior encanto é que, até ao meio-dia, arriscamo-nos a ser os únicos banhistas em toda a praia e área circundante, pois os hábitos noctívagos dos nossos vizinhos retêm-nos em casa até essa hora. É obrigatório levar-se pic-nic, pois o pequeno bar que existe na praia pouco mais serve que sandes e uma cervejinha fresca.
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É um daqueles poucos segredos que merece ser partilhado.
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