domingo, 9 de janeiro de 2011

A viagem hesitante

Andarilho
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Seguramente, ao longo de cada uma das nossas vidas há algumas viagens falhadas: reais, fantasiosas, da volição... Delas, não interessa tanto o destino não atingido, mas sim a viagem de aprendizagem resultante.
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Em Agosto passado rumámos à Eslovénia. Hesitámos na partida, é verdade, mais por cansaço acumulado num ano de trabalho do que pelos quilómetros em perspectiva, mas lutámos contra os maus humores do espírito e lá saímos com algumas horas de atraso face ao previsto. Levávamos um percurso/ calendário de viagem gizado (17 dias), com alguma flexibilidade, mas prevendo sempre muitos quilómetros seguidos nos primeiros dias e nos últimos. Acontece que, perto de Léon, tornámos a hesitar: e se ficássemos duas noites num dos nossos parques de campismo favoritos (o El Cares, nos Picos da Europa)?
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Fomos mais fortes e acabámos por pernoitar no já conhecido Camping Elgar, em St. Jean de Luz. As gatinhas das proprietárias do parque, passados três ou quatro anos da nossa última estada, já não eram vivas, mas deixaram descendência. Estourámos as primeiras dezenas de euros em fichas e adaptadores. Bem estourados, pois não serviram. Mas a simpatia das senhoras não nos deixaram sem luz ou fome e lá jantámos sob a humidade em partículas minúsculas vinda do mar...
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Chegar o mais longe possível era o objectivo do segundo dia. Nem queríamos pensar nas infindáveis A64, A61 e A9... Fomos queimando os quilómetros empurrados a café de termo, preparado ao pequeno almoço, e memórias de outras travessias: "foi neste troço que por duas vezes íamos ficando sem gasolina!"; "do outro lado fica aquele fantástico miradouro sobre Carcassone, lembras-te?"... Numa estação de serviço, perante uma paisagem de cariz mediterrânico, estourámos mais umas dezenas de euros numa cafeteira eléctrica de isqueiro, para poder fazer café a meio das viagens. Bem estouradas, pois trouxemos uma com potência de 24V, própria para camiões! Mais uma vez, a A7, que liga Lyon a Marseille, anunciava pesadelos; ensaiámos percursos alternativos e tentámos desvios... Mas não vale a pena: puxa-se o cobertor de um lado, destapa-se do outro. Pernoitámos a uma vintena de quilómetros de Aix, na Provença, no Camping Durance Luberon. Aix-en-Provence fazia parte das cidades-alvo, cuja visita há muito planeávamos. No parque de campismo, contudo, não havia alvéolos disponíveis, pelo que acampámos na zona desportiva do parque, sem acesso a eletricidade, o que condicionava a nossa permanência por mais do que um dia. Enquanto jantávamos umas sandocas e uma salada de feijão-frade e atum, hesitávamos: visitamos Aix durante a manhã, o que significa poucos quilómetros percorridos no resto do dia, ou apontamos de manhã cedo para o lago Garda? "Logo se vê, mas olha que aquelas nuvens não prometem muito!".
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Aquela noite passada na nossa tenda de muitos anos, neste ano relegada a suplente - para estas ocasiões de pernoitas de um dia, pois a nova é uma casinha -, foi absolutamente inesquecível. Depois de um início de noite a jogar à bisca dos 9, enquanto havia luz natural, e em que o céu se acabrunhava progressivamente, começou a chuviscar mal nos preparávamos para o sono dos justos. Não durou muito. Passada uma meia hora caía-nos toda a água do céu em cima. As costuras velhas da tenda começavam a ceder... A maior trovoada das nossas vidas entrava-nos feita luz pela tenda adentro... Por volta das duas da manhã envio uma mensagem ao meu irmão: "Qual é o tempo para os próximos dias no sul de França, Veneza e Ljubljana?" Igualzinho, foi a resposta. Às quatro da manhã a tempestade amainou.
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Acordámos hesitantes, cansados. Comemos qualquer coisa e arrancámos em direcção a Aix, como se ali alguma coisa nos pudesse orientar. O tempo encoberto não nos dava luz e os arredores da cidade eram deprimentes. No fundo, a dúvida era: arriscamos em frente e com este tempo ou regressamos a Portugal. Circundámos a cidade duas vezes, à procura da saída em direcção à fronteira italiana. Não a encontrávamos. Irritado, virei o Honda em direcção à Iberia: "acampamos uma semana em Aldán, para descansar".
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Fizemos o regresso aborrecidos, desiludidos, a procurar justificações plausíveis para o insucesso, a fazer contas a seis ou sete centenas de euros esbanjadas. Alegrámo-nos um pouco na Belvédère d'Auriac, a área de repouso com a tal vista fantástica sobre Carcassone. Não nos recordamos de outra assim...
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Aproveito a paragem para olhar o mapa e decido: "Vamos fazer um percurso que nunca fizemos, para aproveitar um pouco o dinheiro já gasto: cortamos os Pirenéus por aqui." Este "aqui" apontava para uma estrada secundária que desembocaria em Puigcerdá, nos Pirenéus Catalães, atravessando o Col de la Quillane, pelos 1700 metros de altitude. O céu continuava sombrio e as estradas cada vez mais estreitas e sempre a subir. Começa a chover. E continua a chover e a ver-se muito pouco por entre a névoa. São mais as caravanas do que os carros, os poucos veículos com que nos vamos cruzando. E em estradas estreitas de montanha as caravanas tendem a parar, quando se cruzam... A descida para Puigcerdá traz-nos uma aberta: finalmente podemos ver a paisagem pirenaica na sua plenitude. "Pernoitamos aqui, num hotel?" Resolvemos continuar para sul, em busca de sol. Atravessámos o Túnel de Cadí e gostámos da paisagem. Por pouco tempo, pois recomeça a chover e escurecer intensamente e temos de pernoitar em Berga. Durante a noite, troveja ainda mais do que na noite anterior.
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Acordámos para um novo dia de chuva e a hipótese de um desvio até às praias da Comunidad Valenciana, que afloráramos, fica definitivamente posta de lado. Fizemos um trajecto de regresso conhecido de outras viagens. Almoçámos perto de Burgos: procurávamos um restaurante magnífico onde já tinha estado duas vezes, mas somos enganados por obras na estrada e acabámos num outro sensaborão. E desta vez não estávamos hesitantes! Chegámos à fronteira da Madalena ao fim da tarde, ainda dia. Em cerca de 3 mil quilómetros por Espanha e França não vimos um único incêndio. Portugal estava a arder: do Lindoso a Arcos de Valdevez, em meros 30 quilómetros, vimos 5 ou 6 incêndios, o último deles exactamente à chegada. A chegada perfeita para uma desviagem. Valeu a semana seguinte, em Aldán, na Península de Morrazo (na postagem anterior).
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O que aprendemos, afinal?
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Que a vida dos gatos é como a dos homens: curta e, por isso, deve ser bem aproveitada (com a vantagem de os gatos terem 7 oportunidades para o fazer); que nos dias de grande quilometragem, em viagens de muitos dias, pernoitaremos em hotéis, pois a idade já pesa; que não há igual ao café feito por nós, como naquele anúncio antigo da Nescafé, em que um indivíduo de camisola de gola alta branca observa o mar de dentro do seu automovel; que, quando as coisas correm mal, tendem a continuar a correr mal, não por qualquer desígnio demoníaco, mas porque a menor clarividência é como lenha para a fogueira; que, já suspeitávamos, Portugal é um país a arder: lenha não falta, mas é a inépcia dos governantes a principal acendalha; que, por fim, se hesitarmos, vale mais não sairmos, a não ser porque vamos aprender mais umas coisinhas que todos já sabem.
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