terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

The Temple Bar, Irlanda (II)

Andarilho
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A cidade de Dublin desiludirá uma grande maioria dos seus visitantes, em especial quem procura património artístico construído. A cidade vale por dois nichos de interesse: a sua história literária e universitária, representada na Trinity College; e a experiência de beber uma Guiness perfeita em qualquer pub tradicional (se possível ao som de música celta ou do incontornável Van Morrison) ou na Guiness Hop Store, uma espécie de museu dedicado a esta verdadeira instituição irlandesa.
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The Temple Bar é o espaço mundano mais representativo da vida cosmopolita de Dublin, conhecido por muitos por Gomorra de Dublin. É uma das zonas mais antigas da cidade - um labirinto de ruas estreitas em que pululam restaurantes, pubs e lojas trendy.
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Em Agosto de 2001 estive aqui com os meus amigos Zé António, Susana e Ana. Passámos parte de uma noite no pub homónimo do quarteirão (nas fotos) em busca do verdadeiro pint de Guiness . Uma noite que me ficará para sempre guardada na memória por um episódio absolutamente insólito, otherworldly. As minhas amigas entabulavam conversa com dois australianos (segundo elas, incisivas como são as mulheres, foram eles a abordá-las, convidando-as para um pint) e nós, mais tímidos, ensaiávamos uns bigodinhos espumosos reclinados sobre um balcão corrido. Observávamos um microcosmos do mundo; escutávamos, por entre o ritmo intenso da música soul e pop rock prevalecente, uma verdadeira Babel. Mais do que tímidos, creio, estávamos espantados (que é, aliás, um estado aparentado com a timidez).
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Por entre tragos amargos e aveludados de Guiness e comentários à fauna humana em constante trânsito pelas salas labirínticas do Temple Bar, estacaram-se-me os olhos em 3 moçoilas, recostadas a uma parede de madeira do pub, a dois, três metros de distância. Comentei com o Zé, com a pulsação em aceleração, que falavam de nós por entre risadinhas confidentes. Concordou, com um sorriso revelador. "Estão a olhar para ti", disse-me ele, sem tirar os olhos delas. Aparentavam os seus 20-25 anos, de corpo algo avantajado mas de rosto atraente e vivo, rosado - em especial a que ("valha-me Deus!", terei pensado alarmado) se dirigiu a mim com ar confiante, determinadamente constrangedor:
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- Hi!
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Em poucos momentos da minha vida me senti tão desligado de mim. Lembro-me de ter alinhado na conversa da escocesa de Glasgow com alguma naturalidade, ultrapasada a dificuldade inicial de sintonizar a pronúncia rasgada da beleza celta. Mas era como se o que dissesse fosse pronunciado por uma voz autónoma, distante, enquanto tentava perceber a situação e ao que ela vinha. Até que, ainda perdido, me fuzilou (o diálogo terá sido algo semelhante a isto):
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- Can I ask you something?
- Sure.
- Can I have you shorts?
- What?
- Your boxer shorts.
- My what?
- Your BOXER SHORTS! (quase me beijando a orelha esquerda)
- What for?
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O diálogo que se seguiu (e que esta última pergunta abriu desastradamente) deveria ficar nos compêndios de sedução como o maior disparate de todos os tempos. Não que se tratasse de uma tentativa de sedução propriamente dita, nem que era para isso que ali estava, mas ficava a caminho. Adivinhando o meu não, a jovem explicou-me sucintamente (e certamente com algum enfado) o porquê do seu pedido, como se para fazer amor necessitássemos de explicar a natureza do prazer. Fiquei a saber que era hábito grupos de jovens escocesas de Glasgow deslocarem-se a Dublin ao fim-de-semana para cumprir um rito de passagem em Temple Bar. Soube assim, também, que a jovem que tinha à minha frente teria provavelmente 18 anos (é normal as mulheres britânicas aparentarem ser mais velhas do que o que realmente são), e que estava ali a ser testada pelas outras duas amigas. Já tinha cravado uma bebida a um homem mais velho; um ou dois números de telefone a outros tantos; e realizado outras provas que já se esconderam nos meandros da minha memória. E agora queria os meus shorts.
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- No, I'm sorry.
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Parvo! (dizia-me uma vozinha). Agradeceu-me com frieza e afastou-se para junto das amigas. Não perderam tempo e foram à procura de mais uma vítima. Virei-me para o Zé, que assistira à conversa sem perceber nada para além da minha nega, mas adivinhando a possível asneira. Discutíamos o insólito da abordagem e a justeza da minha decisão, quando, apenas alguns minutos depois, passa afogueada e de mão dada a um sujeito careca a nossa amiga de Glasgow. Em direcção às toilets masculinas. A Susana e a Ana juntaram-se a nós quase a seguir e, talvez também porque não o quisesse saber, não tornámos a ver o par a sair da casa de banho nem no imenso pub. Pouco depois saímos, contando cada um dos pares as sua histórias.
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Que outras provas não teria essa noite a nossa amiga de Glasgow? Nunca o saberei.
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