Nós os portugueses temos um horror especial às más companhias e, quanto aos acompanhamentos dos pratos que adoramos, nem se fala. Português e portuguesa que se prezem, levados a escolher entre partilhar a mesa com um autêntico pirata ou acompanhar os carapauzinhos com puré de batata em vez de arrozinho de tomate, jamais hesitarão em clamar, com a voz embargada de repentina hospitalidade: "Venha daí sua excelência o pirata!"
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É tal o respeito que, quando falamos das coisinhas com que gostamos de comer as nossas coisas, usamos a linguagem diplomática, reservada às digníssimas esposas dos embaixadores: "Acompanha a senhora Dona Saladinha de Pimentos e suas fiéis acólitas, as Meninas Batatinhas Cozidas". E já se sabe que se está a falar do Marquês Sardinha Assada."
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Quando viajamos pela primeira vez, nem que seja a Espanha, ficamos chocados quando nos trazem o bife solitário. Então e o resto, hermano? Pede-se e paga-se à parte. É um escândalo.
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Parte integral do nosso prazer é perguntar acerca de cada prato, quando ponderamos uma ementa: "E vem com quê, esta merda?" (...)
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É por isso que ficamos tragicamente desiludidos quando o empregado, se for da frequente laia dos estraga-prazeres, responde, com o desprezo de um bombista: "Com aquilo que o senhor quiser".
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"O que eu quiser?" Mas já chegamos à anarquia ou quê? Na cozinha portuguesa não há cá eus nem quereres - só apetecimentos. Nós não "queremos" nada - apenas nos apetecem umas iscas e gostaríamos que "viessem" com o acompanhamento com que sempre vêm. Se, por algum trauma de infância, preferimos com batata frita em vez de batata cozida, é a nós que nos compete humilharmo-nos e rastejarmos pelo chão daquela casa de pasto, pedindo em voz muito baixa se "pode ser" com batata frita, como quem confessa gostar de vestir "collants" rasgados na rabeira e aí levar umas boas vergastadas de rama de nabos.
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No fundo, os acompanhamentos na cultura portuguesa são amigos. Entre nós, é raro cultivar-se a amizade singular. Gostamos de ver, pelo menos, dois amigos juntos. É a fenomenologia da "malta". (...)
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O arroz de tomate é o camarada Necas do Peixe Frito; o rapaz que está sempre com ele; (...)
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É por isso que defendo a casmurra intransigência dos portugueses no que toca aos acompanhamentos. Noutros países pode ser uma questão de escolha livre e democrática - se alguém quer uma saladinha satânica de ananás e milho com o cachucho, pois que peça e pague. Para nós, essas fantasias não são acompanhamentos - antes acompanhantes, à maneira daquelas senhoras de vida difícil com vitrine na "Capital".
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E é assim que deve ser. Até porque já é. E melhor argumento não pode haver. Quer dizer, até há. Mas não é para aqui chamado.
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O progresso, para os portugueses, é haver milagrosamente tomates cheirosinhos até em Janeiro, graças ao injustamente vilipendiado efeito-estufa, permitindo-nos prolongar o arrozinho de tomate para generosamente poder fazer companhia aos peixinhos que singram no inverno e dantes ansiavam em vão por serem bem fritinhos e bem acompanhados.
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Apesar de tudo, se há coisa, no meio de tanta ludibriação e barrete; de tanto eufemismo e meia-verdade; que não minta, é o nosso garfinho...
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Miguel Esteves Cardoso
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in A Mesa Portuguesa, coluna do DNA , edição de 9 de Janeiro de 2004
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