sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Parque Natural e Nacional de Doñana

Andarilho
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Uma visita ao Parque Natural e Nacional de Doñana, na província de Huelva, junto à foz do Guadalquivir, será seguramente uma das experiências mais gratificantes e inesquecíveis da vida de qualquer viandante.
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O acesso ao Parque Natural é relativamente aberto, sendo possível circular com liberdade pelas poucas estradas principais e muitos caminhos rurais que o entrecortam. A não perder uma passagem por El Rocío, um pueblo de ruas em areia, não calcetadas, conhecida pela Ermida da Virgen del Rocío, venerada em todo o mundo e responsável pela maior romaria de Espanha. Aqui, podemos observar o que resta da Marisma del Rocío nos meses de verão, um ecossistema sazonal que acolhe milhões de aves migratórias, em especial nos meses de inverno e primavera.
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O acesso ao Parque Nacional, por sua vez, é muito limitado e só se pode efectuar numa das visitas guiadas realizadas pela Cooperativa Andaluza Marismas del Rocío, a partir do Centro de Visitantes "El Acebuche", a poucos quilómetros de Matalascañas. É uma área de protecção integral e provavelmente o maior espaço natural da Europa, de uma beleza extraordinária. As visitas realizam-se em veículos 4x4 com capacidade para 20 pessoas e têm a duração de 4 horas, num percurso total de cerca de 70 quilómetros pelo sistema de dunas móveis, a marisma, a margem direita do Guadalquivir e 30 quilómetros de praias virgens. Pagámos 25 euros, o que poderá parecer muito, mas garantimo-vos ter sido o dinheiro mais bem gasto das nossas vidas.
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A aventura começa logo nos primeiros metros, após a passagem pelo posto de controlo (o Parque Nacional está todo cercado) à saída de Matalascañas, o último reduto do turismo de massas na costa de Huelva. A amplitude do sobe e desce das suspensões do veículo no acesso à linha de praia é tal que arranca de todos genuínos gritos de prazer e espanto, num prenúncio de 4 horas de pura adrenalina. Os primeiros 15 quilómetros são feitos junto à água, com passagem por meia dúzia de cabanas de pescadores artesanais - o único vestígio da presença humana. A quantidade de lixo deixado pelas ondas do mar espanta o grupo de holandeses, franceses, espanhóis e dois portugueses que enchem o veículo. O nosso guia, o simpático Gonzalo, foi contundente: se a praia fosse limpa todos os dias - uma hipótese quase académica, devido à extensão da face marítima do parque: 30 quilómetros -, todos os dias a encontraríamos cheia dos dejectos da humanidade. Os sacos plásticos foram letais para as 3 tartarugas que encontrámos em todo o percurso.
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Inflectimos para dentro do parque, afastando-nos do mar e percorrendo por vários quilómetros um sistema de dunas extraordinário, que avança para o interior, pela força da água e dos ventos, a um ritmo de 6 metros por ano. Entre as dunas gigantes desenvolvem-se pequenos bosques de pinheiros e mato, denominados "currais". Estes acabam por ser inexoravelmente engolidos pelo avanço das dunas e renascem na cauda de uma e a frente de avance de outra, num ciclo primordial.
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As dunas acabam na marisma: uma planície argilosa sem fim, seca e fracturada pelo calor intenso. Este, ao longe, no infinito, provoca uma miragem de água. Esta secura é provisória. Com a chegada da época das chuvas, transforma-se e enche-se de vida. Mas não se julgue que esta desaparece com o verão: na fronteira entre a marisma e o fim do complexo de dunas forma-se uma linha de vegetação que retém humidade suficiente para a sobrevivência de inúmeras espécies: vimos cervos e gamos, javalis, cavalos, gado autóctone, lebres, uma águia imperial... Só não vimos o lince ibérico - mas ainda bem! Deixemo-lo procriar e multiplicar-se nos recantos dos cotos...
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Parámos junto à margem direita do Guadalquivir, limite oriental e natural do parque, com Sanlúcar de Barrameda a um relance do olhar, na província de Cádiz. Em poucos minutos chegamos de novo à praia, junto à foz do quarto maior rio da Península Ibérica. Passámos por várias patrulhas da Guardia Civil e o Gonzalo especula: "o Zapatero deve estar aqui de férias; costuma vir para Huelva e passa as tardes na praia do Parque Nacional." Quem sabe, sabe: alguns quilómetros depois, outra patrulha ordena aos 4x4 (nesta tarde, saíram 5, sempre distanciados por várias centenas de metros) que se afastem da beira-água e inflitam para o ponto alto da praia; um pouco à frente, sentados em cadeiras de praia, de face para o mar e protegidos por um jipe e vários agentes, lá estavam o Primeiro espanhol e a companheira. Boa vida! O rolo da minha câmara, infelizmente, já se tinha acabado; mas não foi pelo político que o lamentei: a meio dos trinta quilómetros deste percurso final junto à água (que o Gonzalo fez questão de percorrer a 40 quilómetros/ hora, num ziguezague vertiginoso e memorável) deparámo-nos com o momento mais terno e extraordinário de todos: uma mãe javali tinha descido das dunas à linha de água em busca de "alimento fácil" (carcaças de vida marinha, explicou o Gonzalo); mas não vinha só: atrás de si, dois javalizinhos cambaleavam, aprendendo a vida e desfrutando de uma liberdade protegida.
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